3.18.2007

torcer bebendo vinho

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3.14.2007

Consumo consciente

Breves notas sobre o Consumo Consciente
Débora Nunes
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Consumir é um dos atos mais naturais e mais antigos dos seres humanos, se entendermos o verbo
consumir como o ato de incorporar ao nosso corpo ou à nossa vida cotidiana, objetos e serviços que
vêm de fora de nós. Assim, vestir-se, por exemplo, é um ato de consumo de objeto usado desde os
mais remotos tempos do homo sapiens. Utilizar-se dos serviços de sábios, como os sacerdotes
egípcios ou os pajés de tribos indígenas brasileiras, por exemplo, também é um hábito de consumo
remotíssimo.
Nem sempre o ato de consumir esteve ligado ao pagamento monetário, mas, ao longo da história da
humanidade o consumo foi se diferenciando por categorias de poder e de riqueza dos indivíduos e
grupos humanos. Enquanto o conjunto dos membros dos povos mesopotâmicos ou pré-colombianos,
por exemplo, vestiam-se mais ou menos do mesmo modo, os dirigentes tinham roupas e adereços
diferenciados, o que os distinguia em posses e de forma simbólica. Esta distinção de alguns pelos
objetos consumidos estava de modo geral vinculada à função a estes atribuídas.
Novas necessidades criadas ao longo da história, acompanhando as conquistas humanas,
determinaram a existência de novos tipos de consumo, como o consumo coletivo. Com a criação das
cidades, por exemplo, tornaram-se necessárias obras de abastecimento público de água e
pavimentação de vias, entre outras, que foram construídas com destinação coletiva. Cabia às
autoridades daquela coletividade proceder à execução destas obras, mediante a cobrança de
impostos ou o trabalho coletivo.
Por longo período na história cada família fabricava ou trocava com vizinhos, ou em feiras, a maior
parte de seus utensílios domésticos; estes, por serem artesanais, eram mais ou menos personalizados.
Com a Revolução Industrial surgem os objetos de consumo de massa, porque surge a produção em
massa. Ao permitir o barateamento dos custos dos objetos, a industrialização aumentou a oferta e a
acessibilidade destes objetos a um número cada vez maior de famílias e indivíduos. A indústria, ao
permitir a produção em larga escala, fez com que idênticos copos de vidro ou alumínio, por
exemplo, passassem a ser vistos em todas as casas de pessoas de um mesmo padrão de renda.
O desenvolvimento tecnológico, que se acelerou depois da Revolução Industrial, renovou a
diferenciação de consumidores a partir da sofisticação técnica dos objetos de consumo. Se antes esta
diferenciação, reveladora de status, estava vinculada principalmente aos materiais de confecção do
objeto (algodão cru para a roupa dos pobres e seda para aquelas dos ricos, por exemplo), a
possibilidade de pagamento da inovação tecnológica inerente ao objeto também passou a ser uma
possibilidade a mais da diferenciação do consumo. Um relógio, realizado de forma artesanal, mas
com a mais alta tecnologia da época da sua invenção, era uma possibilidade de consumo para
poucos.
O que se viu ao longo do século XX foi um consumo cada vez maior de objetos por um número
cada vez maior de pessoas, o que foi aos poucos constituindo o que veio a se chamar de “sociedade
de consumo”. Isto coincide com a consolidação de uma classe média capaz de consumir uma
1
Doutora em Urbanismo pela Universidade Paris XII, professora de graduação da UNIFACS e da UNEB, professora e
pesquisadora sobre Economia Solidária no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da
UNIFACS e Coordenadora de Extensão Comunitária da mesma Universidade.
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quantidade crescente de objetos, situação que antes pertencia a uma categoria muito pequena de
pessoas, os nobres ou burgueses, proprietários de meios de produção – industriais ou comerciantes.
Nesta expressão “sociedade de consumo”, relativamente recente, está embutido também o
simbolismo exacerbado que o tipo de objeto consumido passou a ter, principalmente a partir do
século XX. O que era uma atividade principalmente vinculada à necessidade, passou a ter cada vez
mais uma conotação simbólica, sendo que em muitos casos hoje o simbolismo é maior que a função
utilitária original. Este fato tem determinado um poder cada vez maior à área de marketing, que
estabelece estas ligações simbólicas propulsoras do consumo.
Uma particularidade do modo de produção dominante da nossa época é a chamada “obsolescência
programada”, que consiste em fazer com que um produto tenha uma durabilidade reduzida para
implicar na sua substituição programada para um curto espaço de tempo – e os computadores e
telefones celulares são exemplos bem visíveis. A obsolescência programada, ao lado do desemprego
estrutural, que são inerentes ao modo de produção dominante, são exemplos destacados de uma
perversidade inata do sistema econômico-social que modela a sociedade em que vivemos. Nós, ao
consumirmos acriticamente, também ajudamos a sustentá-lo.
O barateamento dos produtos, a obsolescência programada e a função simbólica do consumo, bases
da “sociedade de consumo”, transformaram-se atualmente num grande problema para a
humanidade: desperdiça-se demais matéria prima e energia para criar objetos de consumo,
rapidamente descartados e com isto polui-se em demasia o planeta, ameaçando-se a já precária
estabilidade do meio ambiente. Alguns acontecimentos de 2004 e 2005, extremamente
mediatizados, como o tsunami e o furacão Katrina, podem ser uma amostra dos efeitos devastadores
das mudanças climáticas em curso que, em última instância, são decorrentes do modo de consumo
vigente no planeta.
A questão do consumo torna-se ainda mais importante quando se sabe que o número de
consumidores não cessa de aumentar. Países superpopulosos como a China e a Índia aumentam a
massa de consumidores a cada dia, e a luta contra a pobreza, que no Brasil começa a alcançar os
resultados recentemente divulgados pelo IBGE (redução da miséria em 8% em um ano) - que traz
tanto a comemorar - tem como conseqüência aumentar a massa de consumidores e o consumo de
energia e matéria prima. Nunca é demais relembrar, entretanto, que o consumo dos mais pobres é
muito diferente do consumo dos mais ricos. Enquanto os pobres gastam a maior parte dos seus
recursos com alimentos e despesas de sobrevivência básica, tendo menos desperdício e deixando
menos resíduos, os ricos, de modo geral, consomem muito e de modo mais perdulário, deixando um
montante de dejetos muitas vezes superior àquele produzido pelas populações pobres, muito mais
numerosas. Isto é válido para as pessoas, como é válido para os países, sendo a população
americana, por exemplo, que equivale a 5% da população do planeta, consumidora de 35% da
energia e produtora de cerca de um terço dos resíduos.
A discussão sobre o Consumo Consciente está vinculada ao quadro exposto acima. Se observarmos
de modo amplo o contexto em que vivemos, perceberemos que em cada gesto cotidiano de consumo
de cada um, joga-se o destino de todos. Neste tema, mais do que em qualquer outro, a fábula do
beija-flor que leva sua parte de água no bico para apagar o incêndio da floresta, fazendo aquilo que
está ao seu alcance para contribuir com o problema de todos, é significativa.
Se cada um de nós observa o quanto gasta em água, em energia elétrica e gasolina, em alimentos,
em roupas, em produtos de higiene e beleza, em papel, etc., pode identificar possibilidades de
diminuição deste consumo. O exemplo vivido por cada brasileiro durante a crise de energia elétrica
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em 2001 mostrou o quanto desperdiçávamos, e muitas famílias e indivíduos puderam usar o dinheiro
economizado na energia para outros fins, que lhes proporcionasse mais bem estar e prazer.
A forma de consumir também conta, e muito: observar a possibilidade de estar o mais perto possível
do produtor, para evitar o desperdício do custo da intermediação e permitir que o consumo gere
emprego e desenvolvimento nas proximidades; mudar o horário de trabalho, para aqueles que
podem, para evitar os engarrafamentos e a concentração da poluição do ar em momentos de pico;
identificar produtores que tenham respeito pelo meio ambiente e preocupações sociais e que não
visem o lucro a qualquer custo, tudo isto tem grande efeito e ainda mais se for seguido por muitas
pessoas. Se trocarmos a Coca-cola pela água de côco, por exemplo, deixaremos de enviar reais para
a matriz americana e estaremos investindo na Bahia e nos baianos, além de fazer bem ao nosso
corpo;
Claro que a transformação do modo de consumo individual e da comunidade precisa ter conexões
com a mudança das políticas públicas: a partir de um determinado momento, é preciso transformar o
entorno para que o consumo consciente tenha mais eficácia e não penalize demasiadamente aqueles
que estão optando por fazer sua parte. É necessário agir politicamente. Para evitar mais vezes o
transporte individual, os transportes coletivos precisam ser melhores. Para reciclar inteiramente o
lixo a partir da triagem feita em casa, a coleta precisa tornar-se seletiva e o encaminhamento dos
materiais para a reciclagem devem ser viabilizados. Para reutilizar inteiramente os papéis, as
impressoras precisam ser mais robustas e não dar defeitos quando se usa papel já anteriormente
impresso. A proposta do Consumo Consciente é uma proposta de engajamento cidadão, já que ela
vai implicando em cada vez mais transformações que vão ultrapassando aos poucos a escala
individual e alcançando toda a sociedade. Esta pode ser uma grande esperança.
Cada um de nós é portador desta esperança, já que está ao alcance de qualquer um, particularmente
dos mais ricos, rever sua forma de consumir. Reagir à manipulação que faz do impulso do consumo
uma busca de felicidade, chegando ao ponto da doença compulsiva. Discutir consigo mesmo e com
as pessoas que nos cercam, sobre o ato cotidiano de consumir é discutir, no fundo, o modo de
estruturação da sociedade, seus valores. Quando olhamos pro lado, poderemos ver que o sistema que
alimentamos ao sermos consumidores acríticos está se deteriorando na violência – irmã da
desigualdade e da fragilização da autoridade familiar – que atinge a todos. A desumanização das
relações sociais e a destruição do planeta não são problemas do futuro, são processos em andamento
com velocidade galopante. Cada um de nós pode ser portador de mudanças